Newsletter #11: A pior pessoa do mundo
Esses dias o algoritmo (sempre ele) botou no meu caminho um trecho de uma entrevista com o ator dinamarquês Mads Mikkelsen, onde ele falava um pouco sobre seu método de atuação, e como constrói seus personagens.
Se você tem idade o suficiente para saber que o Roger Moore era o James Bond “engraçadinho”, deve lembrar do Mikkelsen como vilão Le Chiffre de Cassino Royale. Se você, assim como eu, tinha presença ativa no tumblr em 2010, provavelmente já pensa nele como uma versão menos heteronormativa do vilão Hannibal Lecter na série Hannibal.
Na entrevista, ele é perguntado sobre Taxi Driver, do Scorsese, e comenta como o filme foi um divisor de águas na sua vida ao apresentar um protagonista que não era muito “gostável”. Embora o veterano de guerra (e taxista) vivido por Robert De Niro tivesse algumas características relacionáveis, várias de suas decisões não eram das mais aceitáveis. “Ao invés de me dar muitas respostas, [o filme] me trouxe muitas perguntas. Era brilhante, e isso nunca me deixou”, explica.
Inspirado por isso, ele teria assumido para si a tarefa de nunca deixar as coisas fáceis para o público, e sempre que possível trazer uma ambiguidade para seus personagens (exceto quando se trata do Hannibal, porque aí realmente é complicado se identificar com alguém que curte matar e comer gente). Eu tentei achar o vídeo fora da rede das fotos e não consegui, mas você pode vê-lo aqui.
Eu acho muito interessante ver o Mads Mikkelsen falando dessa forma da própria carreira porque, ironicamente ou não, ele é um ator que ficou conhecido em Hollywood interpretando principalmente vilões. Além dos dois personagens já citados, ele fez mais uma meia dúzia de gângsteres / mafiosos/ líderes fascistas, incluindo numa CERTA FRANQUIA de filme de bruxo. E não esqueçamos o vídeo da Rihanna.
Isso em termos de cinema estadunisense, porque quando nós olhamos a carreira do Mikkelsen na Europa, e principalmente no seu país de origem, ela de fato tem muito mais ambiguidade. Um bom exemplo disso são os filmes feitos com o cineasta Thomas Vinterberg, A caça e Druk - mais uma rodada. No primeiro, ele é um professor em crise acusado erroneamente de abusar de uma aluna. No segundo, (mais) um professor em crise que decide entrar num “experimento alcóolico” com alguns amigos para recuperar parte da juventude e da alegria de viver (e óbvio que dá tudo muito errado).
Eu gosto particularmente desses dois filmes não só porque ambos tem ótimos roteiros, são muito bem dirigidos e contam com atuações maravilhosas, mas porque eles poderiam ser filmes muito fáceis. Pela sinopse, A caça parece ser o tipo de filme que pessoas “conservadoras” usam para falar sobre OS PERIGOS DO CANCELAMENTO E DA CULTURA WOKE. É um filme denso, indigesto, sobre uma mentira que transforma de forma terrível a vida de uma comunidade, e principalmente, de uma pessoa inocente. Seria muito fácil botar a culpa em quem espalha a mentira, e mesmo em quem a acolhe. Mas o que torna o filme tão bom (e tão desconcertante) é justamente porque o diretor explora um culpado bem mais complexo: a masculinidade da cultura dinamarquesa, e as suas consequências para qualquer pessoa que não se encaixe perfeitamente dentro dela.
Já Druk parece ser um filme mais leve, mas também toca em pontos muitos semelhantes. Existe algo de muito cruel em se ver mais próximo da velhice do que da juventude, principalmente se você, como os personagens do filme, transita em um ambiente dominado por jovens. E novamente, seria muito fácil para Druk virar um filme amargo e moralista sobre envelhecimento, vício e a MALDITA GERAÇÃO TIK TOK, mas o que ele entrega é muito mais do que isso. A sequência final é incrivelmente catártica, mas também de partir o coração. É tal da ambuiguidade que nem Vinterberg e nem Mikkelsen parecem querer abrir mão.
(Eu espero que vocês vejam o filme inteiro antes de ver essa cena separada).
Eu trouxe esse exemplos porque eu tenho pensado muito em ambiguidade. Veja bem, eu sou uma pessoa que gosta de literatura gótica. Eu AMO ambiguidade. Para mim os melhores filmes, livros e quadrinhos são os que causam esse mesmo desconforto e fascínio que Taxi Driver causou no Mads Mikkelsen. Isso porque, como ele também aponta na tal entrevista, a ambiguidade é uma forma de humanização.
Talvez quando você lê humanização, seu primeiro impulso seja pensar em “passação de pano”. Eu não te julgo, porque de fato, é o que acontece em MUITOS casos. Quantos obras não trazem versões “adocicadas” de figuras bem problemáticas, ou até mesmo celebram personalidades no mínimo questionáveis (eu estou olhando para você, O Rei do Show).
Voltando para a já citada entrevista, o Mads Mikkelsen usa de exemplo de humanização a atuação do Bruno Ganz em A Queda. Para ele, o Hitler de Ganz é humanizado não porque necessariamente nos daria pena ou compaixão, mas porque entrega algo além da maldade pura que o público já espera. E isso permitiria que ele se tornasse mais compreensível aos nossos olhos, e mais difícil de ser emulado (quem dera Mads, quem dera).
Pessoalmente, eu acho que é vital para nós, enquanto sociedade, aprender a ver esse lado humano em figuras questionáveis, porque, geralmente, esse lado de fato existe. A grande dificuldade, em muitos casos de acusações de crime e assédio, é justamente evitar que as supostas “qualidades” de alguém anulem seus “defeitos”. Sim, não é só porque o seu psiquiatra é extremamente qualificado, charmoso e bom cozinheiro que ele não está fazendo carpaccio com carne de gente. As pessoas são complexas.
Mas o que eu gostaria de voltar a falar de arte porque tenho ficado incomodada com uma certa falta de ambiguidade que vejo em muitas obras hoje em dia, seja no cinema, como na literatura e também nos quadrinhos. O Thiago Borges, do site O Quadro e o Risco, falou um pouco sobre isso nesse texto, e embora eu não concorde com tudo que ele traz, e não conheça todas as referências, concordo bastante com alguns pontos dele, especificamente esse aqui:
Aí chega o ponto sobre o qual eu pensava enquanto lia Peepshow: especialmente no gibi brasileiro atual, falta esse desprendimento, essa dualidade necessária numa época em que retidão moral é cobrada de forma incessante – até porque o mundo de verdade está lotado de contradições. Diversas HQs e tiras sendo feitas hoje colocam a integridade moral dos personagens, e dos temas abordados, acima de qualquer qualidade artística. É como se a existência desses materiais se justificasse tão somente por tecerem um comentário social.
Antes de mais nada, eu não quero citar o texto do Thiago aqui para colocá-lo numa berlinda, do mesmo modo que eu não vou ficar dando exemplos de trabalhos que eu acredito que se encaixem no que ele comenta. Eu sou quadrinista, eu sei como é difícil fazer arte, e a minha intenção não é botar colega nenhum na fogueira ou fazer fofoca. O meu interesse aqui é discutir uma situação que eu acredito ser prejudicial principalmente para nós artistas.
Falando logo do elefante na sala, eu acho que existe sim caminhos muito tortos na forma como julgamos a moral hoje em dia, ou como “cancelamos” as pessoas. É muito óbvio para mim que qualquer pessoa coerente vai concordar que todas discussões atuais sobre racismo, machismo, homofobia e temas correlatos é fundamental e felizmente, um caminho sem volta. Mas também é inegável que existem muitas pessoas mais interessadas em usar essas discussões para gerar caos, sem se importar muito com os resultados.
Dito isso, eu acho extremamente natural que ninguém queira ser cancelado. Todo dia nós vemos um tweet bobagento ser distorcido de todas formas possíveis, então é óbvio que todo mundo entre num estado de alerta. E acho também muito natural que, quando vamos usar os quadrinhos para falar de causas ou temas que consideramos importantes, evitemos tocar em pontos “polêmicos” para evitar uma resistência que já existe. Num mundo com fake news e AI, as informações já são completamente distorcidas, e ninguém vai querer botar mais lenha nessa fogueira.
Isso toca num ponto na questão que nem sempre é lembrado: será que todo mundo pode ser moralmente ambíguo da mesma forma?
Personagens e personalidades “questionáveis” sempre existiram (alô, alô, Irmãs Brontë), e acho que num mundo pós Família Soprano e a era da TV dos HOMENS DIFÍCEIS, nós já entendemos que todo mundo adora um pilantra. Mas talvez pilantras muito específicos. E por específicos, eu digo homens brancos cisgêneros mesmo.
Quando Fleabag começou a ficar famosa, por exemplo, eu achava muito curioso um fenômenos de amigos e amigas que devoravam séries como Mad Men e Breaking Bad, e filmes como Psicopata Americano, mas achavam a personagem da Phoebe Waller-Bridge A PIOR PESSOA DO MUNDO.
Eu não vou fazer uma lista de homens brancos reais e fictícios que teriam sido “absolvidos” pela sociedade, porque novamente, o ponto não é apontar os dedos. O ponto aqui é levantar um incomodo: sinto que muitas pessoas que produzem arte se sentem na obrigação de performar ou defender um posicionamento moral, e que isso pode ser especialmente delicado para quem não se encaixa em padrões de branquitude, gênero, sexualidade, entre outros aspectos. Todo mundo precisa parecer ser muito desconstruído, ter consciência de classe e se você faz parte de uma minoria, a cobrança é ainda maior.
E eu acho sim isso problemático, porque é desumanizante. Veja bem, eu não estou dizendo que uma pessoa não pode defender causas em um trabalho artístico. O encouraçado Potemkin é um dos meus filmes preferidos. Mas eu não quero que ninguém se sinta obrigade a provar sua moral inquestionável, porque isso é humanamente impossível. Todo mundo tem problemas, todo mundo tem defeitos, e isso faz parte da experiência humana. Me pergunto honestamente até que ponto questionar a índole de uma pessoa porque sua obra trata de aspectos desagradáveis da psique humana é válido.
Eu pensei em mais alguns exemplos de autores e histórias que, na minha opinião, traziam personagens complexos e extremamente humanos, e lembrei de uma indicação da minha 1ª newsletter: As Perigosas Sapatas, da Alison Bechdel.
Na introdução da coletânea O Essencial das Perigosas Sapatas, Bechdel conta que começou a fazer estas tiras para representar toda a variedade que a comunidade lésbica trazia. Com o tempo, ela percebeu que essa variedade não era sempre “positiva”:
Talvez fosse mais fácil para Bechdel ignorar essas nuances, mas ela as colocou nas tiras. E isso é o que torna Perigosas Sapatas genial. Ao longo dos vinte anos de publicação da série, as personagens de Bechdel se transformam, algumas casam, outras permanecem solteiras, trocam de emprego, mudam de casa, tem filhos, e além de lidar com todas as mudanças das suas vidas, precisam encarar um mundo onde as certezas já não são mais tão definitivas. E o mais fascinante de tudo isso é como a autora permite que esse processo se dê de forma imperfeita. Desfazendo qualquer idealização, ela mostra que mesmo mulheres extremamente desconstruídas, politizadas e conscientes podem ser preconceituosas e cometer erros. E isso é lindo, porque não tem um personagem de Perigosas Sapatas que não parece um ser humano de verdade.
Eu não estou dizendo que é para todo mundo fazer quadrinhos (ou livros e filmes) expondo as piores opiniões possíveis (por favor, não). Mas eu também não quero ver apenas histórias de pessoas 100% corretas, que não precisem melhorar e se transformar, porque honestamente, eu não acho que exista gente assim.
A arte, em diferentes formatos, nos permite extrapolar a realidade e especular sobre um mundo que ainda não existe. Mas para chegar nesse mundo, é preciso acreditar que o de agora pode ser transformado. E isso inclui acreditar que as pessoas podem mudar, e dar um voto de confiança para o público de que ele será capaz de tirar o melhor das nossas obras. Não acho justo “facilitar” as coisas para o público só porque uma parte dele parece ter preguiça de pensar.
Quando eu penso em ambiguidade, e em humanização, eu penso nisso. Em histórias com personagens que parecem de carne osso porque mesmo que você não se identifique com os seus dilemas, é capaz de entender os sentimentos que eles provocam. Em histórias que tragam menos respostas e mais perguntas, e que por isso, nunca nos abandonem.
E VAMOS PARA AS RECOMENDAÇÕES!
Um filme: O título dessa newsletter foi propositalmente copiado do filme sueco dirigido por Joachim Trier. A trama acompanha as desventuras de Julie, uma mulher com 30 anos recém feitos e quase nenhuma certeza sobre a própria vida. Enquanto sobrevive a empregos pouco estimulantes e se divide entre um namorado quadrinista (pois é) e um barista que conheceu numa festa, a nossa heroína descobre que em alguns momentos todos podemos ser a pior pessoa do mundo (e vamos ter que aprender a viver com isso). O filme está disponível na MUBI e no Prime Video.
Uma leitura: O New York Times publicou uma lista com os 100 melhores livros do século XXI, de acordo com sua equipe. Como esperado, teve criança chorando, gente saindo no soco e mais gente dizendo que faria melhor.
Eu vou me abster de fazer qualquer comentário, e pedir apenas que vocês leiam um livro que de fato entrou na tal lista, em nona posição: Não me abandone jamais, do Kazuo Ishiguro.
A história do livro é toda narrada por Kathy H., uma mulher de 31 anos encerrando seu trabalho como “cuidadora”. Ela relata de forma não-linear suas memórias, com ênfase no período em que passou dentro de internato de elite chamado Hailsham. Não entendemos logo de cara como ou por quê Kathy e seus amigos foram parar lá, mas à medida que as memórias da moça avançam, percebemos que existem os motivos são um tanto quanto….sinistros.
O livro tem um “plot-twist” que é relativamente conhecido, mas eu não vou contar mais porque eu acho que isso é o menor detalhe da história. Quer dizer, é um detalhe fundamental, mas eu pessoalmente nunca vi ninguém trabalhar esse aspecto da trama como o Ishiguro trabalha, com tanta complexidade emocional, tanta nuance e tanta…ambiguidade. Eu já li Não me abandone jamais umas três vezes, e o livro sempre acaba comigo. Mas ele alcançou lugares dentro de mim que nenhum outro livro já alcançou.
Se isso NÃO te convenceu, o livro ganhou uma adaptação em 2010, e o autor ganhou o Nobel de Literatura em 2017.
Talvez eu colocasse ele em 1º lugar, se a lista do NYT fosse minha.
A edição brasileira é da Companhia das Letras, com tradução de Beth Vieira.
E se você quer fazer uma maratona Mads Mikkelsen na sua casa, Druk- mais uma rodada está disponível na Netflix e no Prime Video, enquanto A caça e Hannibal também estão disponíveis nesse último.
Obrigada por ler até o final, e até a próxima newsletter!
Eu não conhecia, vou procurar! Eu gosto dessa ideia também de histórias complexas mas sem "estouros".
Adorei as indicações. Uma obra que causou terremotos silenciosos em mim (perfect days, mais este não combina com o post talvez) foi a serie Our Blues na netflix. Kim Kyu-Tae e os produtores fazem uma coletânea de personagens cheios de buracos a mágoas. É triste, verdade, tem ali o amor como uma moralidade, não tão discretamente. Mas eu gostei do lugar indigesto que várias "pessoas humanas" ali vão parar. Sem estouros, sem fogos de artifício, uma trilha sofrência... e uma fotografia absurda. Ao terminar eu pensei "quero criar personagens assim"