Esses dias eu estava fazendo uma listinha de cabeça de alguns quadrinistas que queria revisitar, como pesquisa para um projeto, e lembrei de E.M. Carroll. Eu já tinha ouvido falar delu muito antes de realmente ler seus quadrinhos, já que muitos colegas citavam seu livro Through the woods mesmo antes da Darkside publicá-lo por aqui como Florestas dos medos (tradução de Bruna Miranda).
Carroll publica quadrinhos (curtos e longos) de horror, e a maioria pode ser lida em seu site. Além de muitas referências a contos de fadas, seus trabalhos abordam temas como o body horror, o infamiliar e a monstruosidade. Elu também costuma fazer histórias ou artes interativas, onde é possível explorar diferentes ambientes e juntar as peças de uma narrativa.
Esses quadrinhos me impactaram muito desde o primeiro momento. Seu traço não necessariamente é assustador, mas Carroll tem uma habilidade absurda de criar atmosferas. Utilizando cores, sombras e elementos visuais específicos, elu vai pouco aos poucos tragando o leitor nos seus universos sombrios. É como ouvir uma história na frente de uma fogueira, prestando atenção apenas na pessoa que conta, e de repente, perceber a mata fechada e impenetrável atrás de você.

Conheci o trabalho de E.M. num momento muito específico, quando eu tinha acabado de me formar na faculdade, estava tratando uma depressão e tinha saído do meu emprego para repensar minha vida e fazer um mestrado. Nesse ano, em 2016, prestei o primeiro dos quatro processos seletivos que tentei, só sendo aprovada no último, em 2019. É interessante revisitá-lo agora, depois de alguns anos e uma dissertação depois, e perceber o que continua ressoando em mim.
Também é interessante perceber que este momento foi um possível desencadeador da mudança na minha relação com as narrativas de horror.
Não é que não gostasse do gênero. Eu via Coragem, o cão covarde, os filmes do Scooby-Doo e lia Edgar Allan Poe. Meu conto favorito de Venha ver o pôr-do-sol, da Lygia Fagundes Telles, era “As formigas”. Mas eu também fui uma criança medrosa que virou uma adolescente (um pouco menos) medrosa. Apesar de algumas exceções, eu não me considerava uma pessoa que gostava de horror porque eu nunca gostei de sentir medo. Era um sentimento real demais, independente dos motivos que o causassem.
Olhando para trás, eu não consigo estabelecer um momento específico em que essa chave virou dentro de mim, as apenas momentos e obras que provocaram certas mudanças, como o caso de E.M. Carroll. Em 2019, quando eu finalmente fui aprovada em um programação de pós-graduação para cursar o mestrado, escolhi fazer a minha dissertação sobre um livro de horror adaptado para uma série de TV do mesmo gênero. O foco da pesquisa acabou sendo um monstro que, na minha não tão humilde opinião, é o monstro de todos os monstros: a Criatura de Frankenstein.

Se você esteve embaixo de uma pedra pelos últimos 200 anos, Frankenstein ou O Prometeu Moderno é um romance escrito pela inglesa Mary Shelley. Só a vida de Mary e o processo de escrita do livro mereciam umas dez newsletters, mas hoje vamos focar na sua criação mais famosa. Na trama, o estudante de química Victor Frankenstein descobre uma forma de gerar vida a partir de matéria morta - especificamente, um corpo de proporções hercúleas formado por membros de cadáveres. Victor utiliza a eletricidade para reanimar sua criatura, e dá certo.
E é aí que tudo dá errado.
No instante em que vê sua criação viva, o estudante se arrepende e abandona. É nesse abandono que o romance se estabelece. Victor foge, fica doente de arrependimento, volta para a casa dos pais e tenta retomar sua vida. Mas não demora para que o rastro de sua criação o alcance. Sem alguém para guiá-lo, o monstro de Frankenstein aprende a duras penas sobre o mundo e como dominar a “ciência divina” da linguagem. Mas sua aparência o impede de ser visto como humano. Até suas páginas finais, o livro explora a tensão entre Victor, o pai que recusa sua “prole”, e da Criatura, que na falta de aceitação, decide ser a aberração que o mundo enxerga.
Eu digo que a Criatura de Frankenstein é o monstro dos monstros porque sua trajetória traz elementos considerados fundamentais para pensarmos a monstruosidade. Se você se dar ao trabalho de pesquisar o tema, vai descobrir que existem diversos teóricos debatendo o assunto e trazendo definições. Mas, ao menos dentre aqueles que eu estudei, existem alguns consensos:
Monstros são criações humanas, que costumam variar de acordo com aspectos culturais, sociais, históricos e econômicos.
Eles representam o Outro, uma diferença impossível de ser ignorada, e que muitas vezes representa limites que não podem ser ultrapassados. Costumam ser híbridos, e parecem escapar de definições pré-concebidas.
Monstros são temidos na mesma media em que são desejados.
Eles podem ser destruídos, mas voltam. Sempre voltam.
Victor Frankenstein repudia sua Criatura pois ela representa sua arrogância perante as leis da natureza. Mas, principalmente, a repudia porque ela é humana demais. O detalhe da fala do monstro costuma ser ignorado na grande maioria das adaptações do romance, mas é fundamental para a história e para o conceito de monstruosidade em si.
Monstros são assustadores não apenas porque representam uma ameaça, uma irregularidade no mundo que conhecemos. São assustadores porque essa ameaça é parecida demais com nós mesmos.
Talvez não seja assim com todo mundo, mas a minha relação com o horror passa especificamente por isso, por esse incomodo de olhar para algo tão aberrante, inconcebível e ameaçador, e perceber que existe algo alí reconhecível. É semelhante ao conceito freudiano de infamiliar (ou inquietante). Para algo causar o sentimento de infamiliaridade, é preciso também causar familiaridade.
Existem muitas elocubrações sobre porque as pessoas gostam tanto de histórias de horror. Questiona-se principalmente o motivo para nos entretemos através do medo que elas provocam. Há quem diga que é porque seria uma forma de risco controlado, mas eu não acredito muito nisso. Ninguém anda de montanha-russa porque sabe que (se tudo der certo) você vai sair ileso, mas porque existe algo de estranhamente divertido em achar que você vai cair de uma altura absurda.
Esses dias, durante uma conversa com uma amiga, lembrei de um dos meus filmes de horror favoritos: O silêncio dos inocentes, de Jonathan Demme. Para seu próprio azar e minha sorte, ela não lembrava quase nada da trama, e isso me garantiu uns 30 minutos de monólogo ininterrupto sobre o filme.
Se você ainda estava debaixo da pedra nos anos 90, O silêncio dos inocentes é inspirado no livro de mesmo nome escrito por Thomas Harris. A obra ganhou algumas continuações na literatura e no cinema, mas eu admito que meio que ignoro a grande maioria delas. O filme acompanha uma jovem trainee do FBI, Clarice Starling (Jodie Foster no papel mais Jodie Foster possível), que é alocada para a investigação de um serial killer que mata e tira a pele de mulheres. Na tentativa de entender a mente do psicopata em questão, o FBI recorre a Hannibal Lecter, um psiquiatra condenado por assassinato e canibalismo.
Além do fato de ter uma dieta bem específica, Hannibal um sujeito extremamente inteligente e calculista. Jack Crawford, chefe de Clarice, a alerta para não deixá-lo entrar na sua cabeça, pois outros agentes já tinham sido enganados por ele.
Mesmo com todas as reviravoltas e puxadas de tapete que sofre, Clarice resolve o caso. Muito disso se deve a sua moral e integridade inabaláveis. Uma das minhas cenas favoritas do filme é quando ela narra uma memória de infância, de quando descobriu que as ovelhas da fazenda do seu tio estavam sendo levadas para o abate. Na tentativa de salvar ao menos um dos bichos, Clarice foge com ele no colo.
Ao longo do filme, nossa heroína não parece ser muito diferente das ovelhas que tentou proteger. Desde os colegas do FBI, passando pelo diretor do presídio Frederick Chilton (que é um porco em qualquer adaptação do livro) e o serial killer Buffalo Bill, todas as figuras vistas como masculinas se comportam como predadores. Os únicos que fogem um pouco disso são, ironicamente, o próprio Hannibal e Crawford, que parecem a enxergar como um ser humano de verdade (e não ironicamente, a alertam um sobre o outro o filme inteiro).
Clarice cumpre sua missão até o fim, mas isso não significa que saia ilesa. Indo contra o conselho de seu chefe, ela deixa que Hannibal entre na sua cabeça, e para obter as informações que precisa, compartilha informações pessoais suas. A já citada cena das ovelhas (que está no título original do filme, The silence of the lambs) é um desses momentos. Apesar de suas características monstruosas, Hannibal ainda é o psiquiatra culto e refinado. Se não fosse pela cela de vidro colocada entre os dois, talvez fosse difícil enxergá-lo como o psicopata que realmente é.
O crime não poderia ser resolvido sem a contribuição de Hannibal, e ao final do longa, a sensação que fica é que os laços entre ele e Clarice não podem ser completamente cortados. Com monstros, o perigo da contaminação sempre existe. Como explica o teórico Jeffrey Cohen, existe um preço a ser pago sempre que ousamos ultrapassar os limites da monstruosidade:
Dar um passo fora dessa geografia oficial significa arriscar sermos atacados por alguma monstruosa patrulha de fronteira ou — o que é pior — tornarmo-nos, nós próprios, monstruosos.
(pág. 41, 2000, tradução de Tomaz Tadeu da Silva.)
A Clarice do fim do filme não é a mesma do começo, e a forma como enxerga as pessoas ao seu redor, como Crawford, também se transformou. Ela atravessa uma porta que Hannibal deixou aberta, e talvez não seja capaz de atravessá-la de volta.
Para mim é impossível pensar o horror sem pensar em monstruosidade, por conta desse reflexo que encontramos de nós mesmos nos monstros. Ao menos para mim, histórias de horror, e principalmente aquelas que trazem monstros (se é que existe alguma sem) são uma porta aberta para uma percepção do mundo que não existia antes. São um convite para ultrapassar fronteiras. Talvez não sejamos mais os mesmos depois que as adentrarmos, mas talvez estejamos mais perto daquilo que realmente somos.

Embora eu não esteja fazendo pesquisa nesse momento, as questões trazidas nessa newsletter estão sempre no meu radar. Desde que defendi minha dissertação penso em como continuar a falar desses temas, não apenas na academia, também em outras áreas da minha vida, como os quadrinhos. A pesquisa que me levou de volta para Carroll é uma tentativa disso. Mas fica para as próximas newsletters.
E VAMOS PARA AS RECOMENDAÇÕES:
Uma (longa) leitura: se você curtiu esse texto e ficou curioso para saber mais sobre o que eu penso desse assunto, pode ler a minha dissertação de mestrado! Ela pode ser lida através do acervo digital da biblioteca da UERJ. Partindo do romance de Mary Shelley, eu analiso como a série de TV Penny Dreadful reconta a trajetória da Criatura de Frankenstein. Se você ficou curioso, mas tem mais coisas para fazer do que ler uma dissertação de mestrado, eu recomendo fortemente que pule o 1º capítulo e vá logo para o 2º.
Outra (longa) leitura: Seria uma afronta fazer um texto sobre monstruosidade e não citar um dos lançamentos mais (merecidamente) celebrados dos últimos anos. Minha coisa favorita é monstro, da Emil Ferris, é uma obra monstruosa não só na temática, mas também nos seus aspectos técnicos: são 416 páginas (na edição brasileira) desenhadas com esferográfica, acompanhando a rotina de Karen Reyes, uma garota de 10 anos obcecada por histórias de terror. A abordagem que o quadrinho faz sobre a monstruosidade é uma das mais divertidas e tocantes que eu já li. E vai ganhar uma continuação em breve! Por aqui ele saiu pelo Quadrinhos na Cia, com tradução de Érico Assis.
Mais uma leitura: talvez você seja, assim como eu, parte do grupo de pessoas que amam O silêncio dos inocentes, mas se incomodam com a transfobia na construção do personagem do Buffalo Bill. Eu não vou me aprofundar nessa discussão agora, mas acho importante ressaltar que existem muitas leituras sobre uma relação entre monstruosidade e transexualidade sem insights transfóbicos, e inclusive feitas por pessoas trans. Um exemplo é o quadrinho Mosntrans: experimentando horrormônios, do ilustrador, quadrinista e Doutor em Literatura Lino Arruda. Na obra, o autor ficcionaliza sua experiência como homens trans, abordando também temas como deficiência e lesbianidade, e tendo a figura do monstro como fio condutor. O quadrinho recebeu o troféu Mix Literário de Melhor Livro LGBT+ de 2021, e foi finalista dos prêmios Next Generation Indie Book Awards e Goldie Awards. Você pode comprá-lo e saber mais sobre no site do Lino Arruda.
Obrigada por ler esta newsletter até aqui, e nos vemos na próxima edição!