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Eu começo o texto dessa semana com uma pergunta que já virou até trend nas redes: quantos filmes existem com a cidade em que você nasceu?
Eu vivi quase a vida toda no Rio de Janeiro e passei 5 dos meus 31 anos em São Paulo. Mas meu lugar de origem, que consta no RG, é Petrópolis, cidade da região serrana do estado do Rio que ficou mais conhecida por ser casa de veraneio da família imperial brasileira.
Os cariocas adoram Petrópolis porque fica a uma hora de distância, e permite que eles vivam a experiência antropológica de sentir frio. É uma cidade pequena, e que leva sua alcunha imperial muito a sério. O tipo de lugar que as pessoas vão para passar um fim de semana com meia dúzia de prédios históricos, tomando vinho e, lá pelo segundo semestre do ano, cerveja na Oktoberfest.
Eu sou uma pessoa que odeia frio e cidades pequenas. Acho que isso diz bastante como eu me sinto sobre Petrópolis. Mas é onde eu nasci, vivi muitos momentos importante, e onde parte da minha família ainda mora. Eu deixei um pedaço do meu queixo num brinquedo do parquinho da Praça da Liberdade. Mais de uma pessoa da minha família trabalhou no Museu Imperial. Tem dias que a única coisa que me faria feliz seria caramelos D’angelo.
Respondendo a pergunta do início, muitos filmes foram filmados em Petrópolis. se você já tem uma certa idade, deve lembrar dessa casa aqui.
Tem um filme específico que não foi filmado lá, mas que menciona a cidade no finzinho. E ironicamente, é um dos meus favoritos:
Eu gosto de dizer que O Grande Hotel Budapeste é um “Wes Anderson para leigos”. Na minha bolha cinéfila, outros filmes do cineasta costumam ser mais lembrados, como Os excêntricos Tenembauns e Moonrise Kingdom. Mas eu acho que ainda assim é um filme que resume bem a obra do cineasta para alguém que não faz a menor ideia de como é seu trabalho. Ele conta com os cenários elaborados, planos simétricos, cores primárias, um elenco formado por muitos de seus colaboradores tradicionais, e um roteiro com um senso de humor meio torto, levemente pomposo e extremamente sensível.
A história do filme segue o romance fictício escrito pelo personagem conhecido apenas como Escritor. Durante sua juventude, ele se hospeda no já decadente hotel do título, e conhece seu proprietário, o solitário milionário Zero Moustafa. Ao perceber o interesse genuíno do autor em conhecer a história por trás da aquisição do espaço, Zero o convida para jantar e relata a trama de conspiração, assassinato e meia dúzia de presepadas por trás. E a figura principal da narrativa é o antigo concierge do hotel, Monsieur Gustave H.
Quando Zero chega no Budapeste, é só um imigrante sem família trabalhando como garoto do lobby. Monsieur Gustave é um sujeito extremamente meticuloso, atento, exigente e meio afetado. Conhece o hotel como a palma da sua mão. Não deixa passar nenhum defeito, nenhum detalhe. Sob sua vigia, o estabelecimento é como um relógio suíço. Nunca descobrimos sua origem exata, mas ele se comporta como um membro da Câmara dos Lordes. É quando está cuidando do hotel ou recitando poesia, passa o tempo se “divertindo” com hóspedes já idosas, ricas e loiras (não pergunte por que loiras, nem Zero sabe explicar).
Gustave e Zero acabam formando uma dupla inusitada. Quando uma das hóspedes e “amigas” de Gustave, Madame D., morre de forma misteriosa, o concierge é acusado do crime e Zero o ajudará a provar sua inocência. Numa reviravolta digna de contos de fadas (sim, vão começar os spoilers), os dois descobrem o verdadeiro culpado, e Gustave se torna o único herdeiro de Madame M., tendo Zero como o seu próprio.
Como o antigo garoto do lobby explica, ele e o concierge compartilhavam uma vocação. E essa vocação não se resume ao brilhantismo de gerenciar um hotel de luxo, mas também um tipo de humanismo que, aos olhos contemporâneos, parece no mínimo ingênuo.
Um dos momentos mais impactantes do filme é quando, ao tentarem atravessar a fronteira para outro país de trem, são interceptados pela polícia. Os oficiais não ficam satisfeitos com a documentação trazida por Zero, e fazem o que a polícia costuma fazer nesses casos: violência. Zero e Gustave são salvos pelo inspetor Henckels, que conhece o concierge há muitos anos. Depois da confusão e do susto, Gustave entra em mais uma de suas divagações poéticas e diz “Ainda existem lampejos de civilização nesse abatedouro bárbaro que uma vez já foi conhecido como humanidade”. Os problemas com autoridades vão se repetir em uma cena muito parecida mais perto do fim do filme. Zero sobrevive para contar sua história ao jovem escritor. Monsieur Gustave, embora tenha ficado rico e loiro como suas amigas, nunca chega à velhice. E nessa segunda reviravolta que o garoto do lobby se torna proprietário do hotel.
O Grande Hotel Budapeste não é um filme histórico, mas sua principal inspiração é o nome citado numa imagem anterior: o escritor austríaco e judeu Stefan Zweig, autor de peças de teatros, contos, biografias, e um dos mais populares do mundo nos anos 1920 e 1930. Zweig fez parte da geração de intelectuais judeus que precisou fugir da Europa com o avanço do Nazismo, e sua parada foi justamente Petrópolis, no Brasil. Foi na cidade que, em 1942, ele e a esposa Lotte tiraram a própria vida. Os biógrafos de Zweig atribuem essa decisão a sua grande desilusão diante dos rumos da 2ª Guerra Mundial, e o que isso significaria para a humanidade.
Eu não li a obra de Stefan Zweig (que felizmente tem sido republicada no Brasil). Quando vi O Grande Hotel Budapeste, sabia da referência ao escritor, mas não a reconheci na tela. Porém, a narrativa do filme e seus temas me lembraram de outro intelectual judeu, com um destino muito semelhante ao do austríaco: Walter Benjamin.
Se você é uma pessoa “de humanas”, muito provavelmente já cruzou com Benjamin na vida. É meio que inevitável. Isso porque ele atuou em diversas áreas de conhecimento. Se jogar o nome dele no google, vai encontrar meia dúzia de sites o definindo como filósofo, ensaísta, crítico literário, sociólogo, tradutor…e uma penca de outras coisas. Um dos maiores intelectuais do século XX, era marxista, e geralmente é associado à Escola de Frankfurt.
Assim como Zweig, Benjamin deixa sua terra natal para escapar do Terceiro Reich. Ao ser capturado na fronteira entre França e Espanha, em 1940, também tira a própria vida.
Assim como essas duas figuras reais, Monsieur Gustave também morre na fronteira. Não apenas física, mas metafórica: a passagem do seu mundo de “lampejos de civilização” para o abatedouro. A Europa que é destruída com a 2ª Guerra Mundial e o avanço do fascismo talvez fosse tão artificial quanto os cenários do filme de Wes Anderson, ou tão perecível quanta abundância do hotel chefiado por Gustave. E, é claro, é meio impossível não pensar que enquanto o mundo europeu produzia intelectuais no nível de Zweig e Benjamin (que entendia muito bem o que significava a barbárie), estava transformando o resto do globo no seu quintal particular. Mas isso não a torna sua perda menos sofrida, e a brutalidade do que vem em seguida menos arrasadora.
No fim do filme, Zero diz que o mundo de Mounsieur Gustave já havia desaparecido muito antes do próprio estar nele, mas que o concierge sustentou essa ilusão com muita elegância. Para mim, O Grande Hotel Budapeste sempre foi um filme sobre essas ilusões perdidas, esse ideal de civilização que nunca existiu.
Mas tem algo mais nisso tudo, que foi amarrado com um filme de Wes Anderson lançado seis anos depois: A Crônica Francesa.
Esse já começa com uma morte, a do jornalista estadunidense Arthur Howitzer Jr, editor da publicação impressa que dá nome ao filme. Anos antes, Arthur convencera o pai, também jornalista e dono do jornal Liberty, Kansas, Evening Sun, a deixá-lo ir viver na França e escrever matérias para a revista semanal do impresso. As matérias se transformaram num semanário com artigos e textos de “interesse humano” escritos por uma equipe de jornalistas de alto prestígio. Com a morte do editor, A Crônica Francesa chega à sua última edição, e o filme apresenta as matérias derradeiras, que são tão rocambolescas quanto seus autores.
Apesar dos anos de diferença, esse filme tem várias coisas em comum com O Grande Hotel…: uma ambientação europeia, muitas referências artísticas, uma investigação policial meio atrapalhada, Tilda Swinton de peruca, Adrien Brody interpretando um 171…e Walter Benjamin. Isso, claro, de acordo com a minha interpretação. E dessa vez o que aparecia não era sua biografia, mas sim sua obra teórica.
Como uma pessoa que passou pela Comunicação Social, o Cinema e a Letras, dois textos foram fundamentais na minha formação. O primeiro é o ensaio A Obra de Arte na era de sua Reprodutibilidade Técnica, publicado postumamente em 1955, que apresenta uma análise de como a fotografia e cinema acabam com o conceito de “aura” do objeto artístico, provocando (falando de forma MUITO concisa) o fim da sua autenticidade.
O segundo é O Narrador, escrito em 1936. Assim como A Obra de Arte, pode ser encontrado com facilidade na internet.
O Narrador é um texto que me assombra, de todas formas possíveis. Já o li e reli mas vezes do que eu gostaria, em parte porque ele é uma dessas leituras obrigatórias das faculdades de humanas, e em parte porque os seus temas vivem me orbitando.
Benjamin começa anunciando que a arte de narrar está em vias de extinção. Isso porque a humanidade estaria vivendo um esgotamento da experiência. A base da narrativa seria justamente na capacidade de compartilhar para o outro um pouco do seu conhecimento de mundo, de trazer conselhos. Na medida que isso se esvazia, se esvazia também a capacidade de contar histórias.
Mas o que forma essa tal experiência do narrador? Para Benjamin, ela pode ter duas origens:
“Quem viaja tem muito o que contar”, diz o povo, e com isso imagina o narrador como alguém que vem de longe. Mas também escutamos com prazer o homem que ganhou honestamente sua vida sem sair do seu país e que conhece suas histórias e tradições. Se quisermos concretizar esses dois grupos através dos seus representantes arcaicos, podemos dizer que um é exemplificado pelo camponês sedentário, e outro pelo marinheiro comerciante.”
BENJAMIN, p. 199 (tradução de Sergio Paulo Rouanet, publicada no livro Magia e técnica, arte e política, em 1987, pela editora brasiliense)
O narrador ideal seria então a união dessas duas figuras, alguém com um olho no mundo lá fora, e outro para dentro de casa.
Em A Crônica Francesa, a equipe formada por Arthur Jr é tão expatriada quanto ele. Os quatro repórteres que narram as histórias do filme são figuras excêntricas, deslocadas de convenções sociais do mesmo modo que estão fora de seu país de origem. O ciclista Sazerac escreve sobre prostituas, ladrões e crianças baderneiras porque, nas palavras do editor, “esta é a sua gente”. Krementz, que acompanha a revolução juvenil à la Maio de 68, fala abertamente que não se casa e tem filhos por convicções próprias. E a especialista em arte Berensen, interpretada por Tilda Swilton…é a uma personagem da Tilda Swilton ( e eu falo isso como o MAIOR dos elogios).
Mas de todos os narradores do semanário, nenhum é um estrangeiro como Roebuck Wright. Inspirado no escritor estadunidense James Baldwin, Wright é apresentado por si mesmo e por outros personagens como um autor prolífico, que cobriu os mais diversos assuntos, e possui uma memória fidedigna de tudo que já escreveu. É também um homem negro e gay.
Sua história é a última do filme, e traz uma trama policial envolvendo Nescaffier, um chef de cozinha da polícia, e o sequestro do filho do comissário. Embora Arthur seja compreensivo e protetor com todos os jornalistas, no caso de Wright isso ganha outros significados quando é revelado que sua contratação o tirou da cadeia, após ser preso por, nas suas palavras, “amar do jeito errado”.
A trama detetivesca na qual Wright se envolve por acaso termina com um jantar envenenado sendo servido para os sequestradores, e provado pelo próprio chef. Após a resolução do crime, o cozinheiro explica para o jornalista porque assumira o risco: “Eu não estava com vontade de ser uma decepção para todos”, diz Nescaffier que, vale notar, é interpretado pelo ator Steve Park, de ascendência coreana. “Veja bem, eu sou um estrangeiro”.
Não só ele, mas Benjamin, Zweig e os personagens de ambos os filmes trazem em si essa união entre o marinheiro e o comerciante que constituíram o narrador. Habitando essa zona cinzenta entre o longe e o perto, o estranho e o conhecido, são capazes de trazer ao ouvinte um pouco da sua sabedoria e senso prático, permitindo, nas palavras de Benjamin, esquecer de si próprio e gravar aquelas histórias de forma permanente.
Em O Narrador, Benjamin atribui alguns fatores para o fim da arte de narrar. Um deles o surgimento do romance, que apresenta um indivíduo isolado, incapaz de comunicar seus dilemas e ouvir os problemas dos outros. Para Benjamin, a grandeza de alma de um Don Quixote não se traduz necessariamente na sabedoria que o narrador “tradicional” possui.
Outro fator seria a informação. Igualmente apreciada pela burguesia, a informação não deixa espaço para o mistério, pois exige uma explicação e credibilidade.
"O saber, que vinha de longe - do longe espacial das terras estranhas, ou do longe temporal contido na tradição -, dispunha de uma autoridade que era válida mesmo que não fosse controlável pela experiência. Mas a informação aspira a uma verificação imediata. Antes de mais nada, ela precisa ser compreensível “em si e para si”.
BENJAMIN, p. 203.
Ao falar sobre o esvaziamento da experiência, Benjamin também cita o trauma da guerra das trincheiras, que resultou numa geração de jovens incapazes de narrar ao mundo a destruição que vivenciaram.
O Narrador é escrito em 1936, antes do começo do conflito que criaria a distinção entre uma 1ª e 2º Guerra Mundial, cujos rastros permaneceriam até os dias de hoje, constantemente nos desafiando a repensar a forma como narramos a experiência. Freud fala que o trauma seria justamente o excesso de memória, e isso vai de encontro com O Narrador. A experiência do mundo não se resume a quantidade de vivências, mas a algo mais profundo.
No fim de O Grande Hotel Budapeste, o jovem escritor pergunta a Zero porque manteve o estabelecimento. Era por causa de Gustave? O proprietário responde que na verdade era por causa de Agatha, a namorada confeiteira que auxilia os dois na trama conspiratória. Eles casam, mas a moça morre logo depois por questões de saúde.
“Nós fomos felizes aqui, por algum tempo”, Zero explica.
Talvez esteja aí os “lampejos de civilização”, ou, nas palavras de Roebuck Wright, “o que nos escapa nos lugares que um dia chamamos de casa”.
Talvez esteja aí a arte de narrar.
E AGORA, AS RECOMENDAÇÕES:
As recomendações dessa semana são todas newsletter relativamente recentes, mas que já trazem olhares muito únicos sobre quadrinhos, literatura e arte em geral.
A primeira é a do Pedro Vó, que, como eu descubro no minuto em que estou fechando essa edição, acabou de lançar essa pedrada em forma de texto. As ilustrações que acompanham são um verdadeiro desbunde:
A segunda é a newsletter do Selo Harvi, escrita pelo editor Marcos KZ. No texto mais recente, ele explica de onde vem o nome do selo, e como isso influencia sua visão de fazer quadrinhos (que eu compartilho em muitos níveis):
E a terceira é da Fefa, vulgarmente conhecida como Fernanda Lacombe, Doutora em Literatura Comparada e minha irmã gêmea. Em Deitada em frente ao mar, ela finalmente compartilha com o mundo um pouco da sua visão sobre “a ciência divina” das letras. No primeiro texto, ela fala de um tipo de narrativa que nós duas adoramos:
Obrigada por ler até o final, e até a próxima edição!
Já ouvi muitas pessoas dizerem que não gostam da artificialidade dos filmes do Wes Anderson, mas eles sempre me comoveram muito. Minha teoria é que é porque eu cresci em Petrópolis, uma cidade que é pura artificialidade feat. decadência. Quando li o nome da cidade bem pequenininho nos créditos do Hotel Budapeste me bateu uma sensação muito difícil de explicar, fiquei um tempo paralisada na cadeira do cinema.
Que doido e que legal me deparar com esse texto aqui. Obrigada!
Sabado tem uma nuance especial depois de ler sua "narrativa". Se me faltam palavras corretas, esbanjo amor, carinho e admiraçao pela "narradora".