Bem-vindes a mais uma edição da newsletter!
Talvez você não saiba, mas eu tenho uma irmã gêmea. A Fernanda (ou Fefa) é formada em letras, e não contente em ser doutora em literatura comparada, é doutoranda em ciência política. Pois é. Algumas pessoas atravessam a américa latina de moto, outras fazem dois doutorados.
Nós moramos em cidades diferentes, e apesar disso, conversamos todo o dia por mensagem. Hoje a Fefa publicou na sua newsletter uma reflexão sobre esse senso comum de repetir que os millenials abandonaram os sonhos agora que decidiram fazer concurso público, e nós tivemos uma longa conversa ontem sobre isso antes que ela terminasse o texto.
O que ela escreveu foi de encontro com uma série de outras reflexões que eu venho fazendo há algum tempo, e no centro de tudo parece estar um sentimento específico: cinismo.
A vida de (praticamente) ninguém está fácil: geral trabalha feito corno e corre o risco de ser trocado por robô, daqui a pouco não vai ter árvore nem para fazer papel higiênico e o fascismo é pior que qualquer morto-vivo. Não é o primeiro e nem será o último momento de crise vivido pela humanidade, mas talvez ela nunca tenha sido tão debatida ou explanada. É razoável que a maioria das pessoas esteja cansada e frustrada com uma vida que podia ser muito melhor, mas não é.
Ao mesmo tempo, eu sinto que estamos caindo numa armadilha de, na tentativa de lidar com essa grande desilusão, abrir mão de qualquer possibilidade de imaginar futuros possíveis, e de se deixar maravilhar pelo que existe por aí.
Todo dia somos borbadeades por informações que só ressaltam tudo que precisa ser transformado no mundo, mas esse reconhecimento não me parece, ao menos em círculos próximos, se transformar em ações concretas na sociedade, e sim em um estado constante de ressentimento e até moralismo.
Dizem que todo dia um malandro e um otário saem de casa, mas botar o pé na rua diariamente achando que o mundo inteiro é feito de possíveis malandros está matando qualquer chance que existe dentro de nós de acreditar em mudança e caminhos a serem descobertos. E esse processo é de mão dupla. Se você não consegue imaginar possibilidades nos outros, como os outros vão imaginar possibilidades em você?
Isso impacta diretamente a forma como nós produzimos e nos relacionamos com arte. Não consigo acreditar numa relação com os filmes, livros, quadrinhos e músicas que não passe por esse deslumbramento, de encanto. De olhar para as pessoas, as coisas, os lugares, e encontrar um brilho nunca antes visto.
Além disso, trazendo um ponto de vista extremamente pessoal, a arte é uma das poucas coisas na vida que me fazem acreditar na possibilidade de escapar de todos os horrores.
Esse vídeo aí de cima é uma gravação bem “caseira” de um concerto realizado na Cidade das Artes, no Rio, com temas de clássicos do cinema italiano. Tenho 99% de certeza que essa gravação é da mesma apresentação que eu vi com a minha família. A minha maior lembrança desse dia foi justamente esse momento específico, em que ouvi pela primeira vez uma das músicas do filme A Missão.
Eu nunca tinha visto esse filme, e até hoje não assisti, porque não é exatamente fácil de achar. Mas apesar de tudo isso, de nunca ter sequer ouvido falar dele, no momento em que a orquestra começou a tocar, eu estava aos prantos, chorando igual uma criança. Porque eu nunca tinha ouvido, e até hoje nunca ouvi nada parecido. E até hoje, quando essa música pipoca no meu spotify, eu preciso fazer um esforço hercúleo para não começar a chorar de novo, simplesmente porque é simplesmente lindo.
Outra experiência parecida foi ir ao Louvre. Eu me apertei junto com um milhão de pessoinhas para dar uma boa olhada na Mona Lisa. E foi sim uma experiência incrível, mesmo ela sendo pequena, mesmo tendo um milhão de turistas tirando fotos ao meu redor.
Eu já estava feliz e satisfeita, e aí me virei de costas para sair da sala, e dei de cara com “Bodas de Caná” de Veronese, na parede oposta. E foi como se um caminhão tivesse me atropelado, porque ninguém nunca tinha me dito que aquele quadro dividia a sala com a Mona Lisa, e ninguém nunca tinha me dito que ele era tão grande.
Numa das respostas para os fãs em seu site, Nick Cave (pode virar uma dose) disse que não acreditava em separar o artista da obra porque, para ele, pessoas ruins terem a capacidade de criar arte era um sinal de esperança. Em tradução livre:
“Ser humano é transgredir, disso podemos ter certeza, e ainda assim todos nós temos a oportunidade de redenção, de nos elevarmos acima das partes mais lamentáveis da nossa natureza, de fazer o bem apesar de nós mesmos, de transformar o que não é belo em beleza e de ter a coragem de apresentar o que há de melhor em nós mesmos ao mundo.”
Uma vez, diante de mais um desses casos de “homens célebres que fazem coisas terríveis”, uma amiga comentou, em tom mais de lamentação do que de fatalidade, que já devíamos esperar por isso. Por um segundo eu concordei, e logo depois voltei atrás. Porque não é justo que a gente viva esperando sempre levar uma facada (metafórica ou não) dos outros. Não é só porque uma coisa pode acontecer e acontece que ela deve ser considerada razoável.
Viver em alienação não torna a vida de ninguém mais fácil, mas permanecer em uma lógica de escassez (financeira ou emocional) também não adianta. Eu olho ao meu redor, principalmente para pessoas que lidam constantemente com arte, e vejo muita gente comprando esse discurso de que a vida é terrível mesmo, não adianta ter esperanças, sonhar mais alto, o melhor que se pode fazer é pagar as contas e a netflix para poder derreter o cérebro no fim de semana.
Para fazer uma arte que emocione, toque, provoque reflexões, é preciso acreditar que vai ter alguém para se emocionar, ser tocade e refletir. Não dá para querer mudar o mundo se você não acha que ele pode ser mudado.
Como eu disse no início do texto, eu e a Fefa conversamos muito, sobre muitas coisas. Um dos tópicos recorrentes é arte. Nem sempre nós concordamos, e em alguns momentos, a visão mais romântica dela vai de encontro com o meu lado mais pessimista e cascudo. Ajuda nisso o fato de que a Fefa passou muitos anos sem fazer arte, enquanto eu estava aí diagramando zine de madrugada. Ela fez seu primeiro zine, e talvez depois de fazer mais alguns ele ganhe um pouco do meu mau humor. Será que esse é o caminho?


Além disso, eu costumo oscilar entre grandes expectativas e um pessimismo alarmante. A vida inteira eu fui o tipo de pessoa que tentava ao máximo se preparar para as desilusões, na tentativa de sofrer menos. Desnecessário dizer que isso era uma receita para sofrer em dobro.
Muito do gosto que eu e a Fefa temos por literatura vem da nossa formação mais básica. Nós estudamos em um colégio que se chamava literalmente Don Quixote. Nossa relação com o personagem de Cervantes já teve várias facetas. Hoje em dia, a minha é muito pautada pela leitura (bem liberal) que o musical O Homem de La Mancha traz da obra.
Na peça, o próprio Miguel de Cervantes é preso pela Inquisição Espanhola (ninguém espera por ela). Na prisão, para não perder seus pertences para os outros prisioneiros, o escritor monta uma defesa em forma de teatro, baseado no manuscrito que está escrevendo. É então que criador e criatura se misturam, e Don Quixote ganha vida no palco. Aqui o cavaleiro meio lé com cré das ideias não é só uma personalidade nova do nobre Alonso Quijano, mas do próprio autor.
Ao longo do musical, pontos importantes da obra original de Cervantes são retomados, como a luta contra os monstros / moinhos de vento, e o encontro com Dulcinéia. No fim, Quixote volta para sua persona original, e a apresentação de Cervantes é interrompida quando o escritor é levado para o tribunal da Inquisição. O teatro que ambos constroem se desfaz diante de forças incontornáveis. Mas pouco antes de falecer, e da representação ser interrompida, Quijano volta a ser Quixote por um breve momento. E isso é a única coisa que importa. Mesmo que os monstros sejam só moinhos de vento, e Dulcinéia não seja a dama que parece ser.
Porque a partir do momento em que Don Quixote é Don Quixote, o mundo inteiro se reconfigura à sua maneira.
E AGORA, AS RECOMENDAÇÕES:
(ou só uma recomendação mesmo, porque a semana foi corrida)
Um música: essa versão ao vivaço de “The Trapeze Swinger”, do Iron & Wine (a música começa em 8:00, mas vale ouvir o show inteiro também).
Obrigada por ler até o final, e até a próxima!
Concordo demais. Cinismo e conformismo, pra mim, são duas coisas que andam juntas, e não quero nenhuma delas.
Belo texto! Concordo com esse sentimento em alguma medida, ainda que não saiba qual. Me incomoda ver gente 100% cínica, mas me incomoda ainda mais quem (ao meu ver) tenta com todas as forças se iludir pra fugir disso.
Volto sempre naquela história de "pessimismo na razão, otimismo na vontade".