Newsletter #9: Toda história de amor é uma história de fantasmas
Bem-vindes a mais uma newsletter!
Queria começar a de hoje agradecendo a todes que leram a edição passada. Por um lado, fico triste de ver vários colegas passando pelas mesmas questões e inseguranças. Mas fico menos triste ao ver pessoas talentosas e esforçadas percebendo essas questões, e pensando em como lidar com elas.
A newsletter de novo começa com uma conversa que tive com o Fabiano Denardin, editor de Esperando por você, que acredito que aconteceu logo depois que eu entreguei as páginas finalizadas da história.
Nós precisávamos do título, e eu não tinha a menor ideia de qual seria.
Quer dizer, eu sabia que queria que fosse uma música do Nick Cave. Pode ser básico, mas o quadrinho é sobre o sujeito, afinal. Pensamos em várias, eu trouxe inclusive uma sugestão com referência de música de outro artistas, mas nada parecia funcionar 100%.
No meio da conversa, comentei com o Fabiano uma questão que me pegava muito, principalmente chegando ao fim da HQ: as perdas do Cave.
Ele é um homem já na casa dos 60, com mais de 40 anos de carreira, que viveu em diferentes países. Nessa idade e levando em conta os pormenores do mundo da música e das celebridades, ele já tinha visto muitos amigos e colegas irem embora.
Mas, principalmente, ele tinha perdido filhos.
Das quatro "crianças Cave" - Jethro, Luke, e os gêmeos Arthur e Earl - metade está viva. Jethro, que nasceu logo antes de Luke, mas de outra mãe, morreu em 2022, aos 31 anos, depois de um suposto diagnóstico de esquizofrenia e uma vida que não parece ter sido fácil. E Arthur tinha 15 anos quando sofreu um acidente e morreu em 2015.
O que eu pensava no fim do quadrinho era em fantasmas, de pessoas vivas ou não: da temporada do cantor em São Paulo, de sua ex-esposa Viviane, do filho Luke, da Mercearia São Pedro, Nannie Jacobson, e dos filhos já falecidos. O que tudo isso significava para o músico, e o mais importante: para onde vão todas essas memórias?
Pensando em tudo isso, eu lembrei de um documentário brasileiro feito inteiramente de montagens chamado Nós que aqui estamos, por vós esperamos, do diretor Marcelo Masagão. Inspirado na leitura do livro Era dos Extremos, de Eric Hobsbawm, o filme traz os principais acontecimentos do século XX no mundo ocidental. Seu título veio da inscrição na entrada do cemitério da cidade de Paraibuna, no interior de São Paulo.
É, o que espera todo mundo, é o fim. Mas talvez exista algo de poético em uma conclusão igual para todas as pessoas.
Compartilhando todas essas elucubrações com o Fabiano por whatsapp, ele lançou: “Waiting for you”. Esperando por você. E ainda completou: "
- É o que você faz no fim do quadrinho, espera pelo Cave.
“Waiting for you” é a 3° música de Ghosteen, um dos dois álbuns que Cave compôs pensando em Arthur. Eu e Fabiano cogitamos usar o nome de uma das músicas de Skeleton Tree, e outro disco também feito para o jovem, mas achamos que o tom era muito pesado para o quadrinho. Feito em 2019, Ghosteen fala sobre o luto de uma forma mais distanciada, e talvez por isso, mais esperançosa.
É um disco que para mim representa muito a frase que nomeia essa edição da newsletter, e que eu distorci ao incluir na HQ: Toda história de amor, é uma história de fantasmas.
E Esperando por você era sobre isso.
“Toda história de amor é uma história de fantasmas” é um frase atribuída ao escritor estadunidense David Foster Wallace, mas cuja autoria nunca foi de fato comprovada. Wallace a usou em uma carta, mas não confirmava se era sua.
Uma frase sem autoria para uma HQ sobre uma foto sem autoria.
E Esperando por você é um quadrinho todo feito de registros do que já aconteceu: desde capas de discos, fotos e filmagens de Cave, o relato de quem conviveu com ele e o próprio fio do Fabiano.


Trabalhar com esses registros, esses fantasmas, significa trabalhar com memória. E ela é uma das coisas menos confiáveis do mundo.
Já falei aqui antes da série True Detective, que é uma das minhas favoritas. Sendo uma antologia, cada temporada tem sua própria narrativa. Na 3ª acompanhamos o detetive aposentado Wayne Hays, interpretado por Mahershala Ali, revisitar um caso do passado. Só tem um problema: Wayne sofre com uma doença degenerativa não especificada que embaralha suas memórias. Além de ter episódios de esquecimento, ele confunde suas memórias com o tempo presente: num minuto ele está dentro da própria casa, no presente, e no outro, de volta ao tempo em que lutou na Guerra do Vietnã, no passado.
Quem ver a temporada vai perceber que Wayne não resolverá o caso sozinho. Eu pessoalmente também vejo True Detective como uma série sobre "caminhos alternativos". Ao longo da maioria das temporadas, os detetives precisam lidar com casos que desafiam a lógica e a racionalidade. Temos desde o "monstro de espaguete" da 1ª temporada, até o bloco de cientistas congelados da 4ª. Somado a isso, os protagonistas costumam ter um traço de personalidade ou característica que os impede de ver o mundo e os fatos de forma "neutra".
E ironicamente, funciona. É justamente quando os personagens abrem mão de usar apenas a racionalidade e abraçam essa "falha" que conseguem resolver o caso. Na 3ª temporada, os resultados da busca de Wayne são mais ambíguos, mas ainda assim ele precisa aceitar a própria condição para chegar perto de uma resposta.
A memória nunca é confiável, nós sabemos disso. Ela se molda às nossas próprias percepções do presente, e também às informações que nos passam. Ao mesmo tempo, memória também pode significar disputa. Ter acesso a uma memória significa ter controle de uma narrativa. Trabalhar com a memória, então, significa aceitar que talvez a sua narrativa não seja objetiva, e que muito possivelmente ela será contestada.
Mas acredito que, acima de tudo, trabalhar com memória é entender que algumas coisas, pessoas, e sentimentos não podem ser perdidos. Eles precisam ir para algum lugar. Ou pelo menos, estar esperando por nós em algum lugar.

A ideia por trás de Partidas já existia antes de eu começar a trabalhar em Esperando por você. Ela tomou várias formas antes de chegar no roteiro do quadrinho. O que eu soube desde o início é que eu precisava falar sobre tia Lucy porque as memórias que eu tinha dela precisavam ficar em algum lugar. Elas não podiam só existir na minha cabeça. Eu precisava que mais pessoas soubessem não apenas daquilo que foi capturado em fotografias, mas também do que já não existia mais: a planta que crescia pelas paredes de um dos quartos de sua casa, os ovos de Páscoa decorados com os nomes dos sobrinhos, e a risada dela, que felizmente, vinha com frequência.

Existe uma ideia de que a humanidade faria arte como uma forma de registro, de preservar tudo aquilo que finito, sensível a passagem do tempo, perecível, para o futuro. Eu concordo em parte com isso, mas não totalmente porque acho que esse raciocínio ignora um aspecto muito importante de fazer arte: criação. Criar significa necessariamente transformar algo. Logo, fazer arte não é pura e simplesmente registrar como vemos o mundo, mas transformar essa percepção.
E talvez por isso eu tenha um carinho muito especial por um texto teórico sobre cinema que todo estudante da área acaba lendo em algum momento: “Ontologia da imagem cinematográfica”, de André Bazin. Considerado um dos maiores críticos da história do cinema, Bazin foi cofundador da Cahiers du Cinema, revista que existe até hoje, e serviu de terreno para que cineastas como Truffaut começassem a pensar e escrever sobre os filmes que consumiam, para, depois, fazerem seus próprios.
Em seu texto, ele traça um panorama histórico da relação das artes visuais (especialmente a pintura) com a representação da realidade. Para Bazin, a chegada da fotografia teria libertado sua “irmã mais velha” de uma obrigatoriedade de registro e representação fiel da realidade, o que explicaria o surgimento das vanguardas modernistas, e de uma pintura menos figurativa. Para Bazin, a originalidade da fotografia em relação a pintura estaria na sua “objetividade essencial”.
“As virtualidades estéticas da fotografia residem na revelação do real. O reflexo na calçada molhada, o gesto de uma criança, independia de mim distingui-los no tecido do mundo exterior; somente a impassibilidade da objetiva, despojando o objeto de hábitos e preconceitos, de toda a ganga espiritual com que minha percepção o revestia, poderia torná-lo virgem à minha atenção e, afinal, ao meu amor.”
BAZIN, p. 34,2018, em edição foi publicada pela editora Ubu, com tradução de Eloisa Araújo Ribeiro.
Acho especialmente tocante pensar nisso quando falamos de cinema porque se trata de uma arte que brinca o tempo todo com a ideia de passado, presente, materialidade e imaterialidade. As imagens do cinema são fantasmagóricas, na medida em que são feitas de projeção de luz. Ao serem reproduzidos, em diferentes formatos, os filmes trazem para o presente imagens do que já existiu. No mesmo texto já citado, o próprio Bazin vai completar que o cinema seria mais um passo após a fotografia, pois não se contenta em apenas “embalsamar” a imagem. Nas palavras dele, “pela primeira vez, a imagem das coisas é também a sua duração, qual uma múmia da mutação” (p.32, 2018).
Para mim, o cinema é uma arte feita de histórias de fantasmas.
Foi com isso em mente que inclui em Partidas algumas das percepções sobre cinema, junto da visão de Tarkovski, outro teórico / cineasta cuja obra eu venho me aproximando desde que me formei. Essas não são todas as inspirações que existem por trás do quadrinho, mas essa newsletter já ficou bem grandinha, e o resto pode ser destrinchado em edições próximas.
Acredito que seja comum que artistas trabalhem a mesma temática, sobre diferentes perspectivas, em mais de uma obra. Sei que muito do processo e dos temas explorados em Esperando por você foram fundamentais para a criação de Partidas. E gosto de pensar em ambos como uma variação do que Bazin propõe em seu texto: formas de repensar nossas memórias e nossas histórias de fantasmas, permitindo amá-las como não pudemos antes.
E AGORA, AS RECOMENDAÇÕES:
Um filme: outra das várias inspirações para Partidas foi o documentário Retratos Fantasmas, de Kleber Mendonça Filho. O foco principal do longa-metragem é a história de três grandes cinemas do centro de Recife, e o impacto das transformações urbanas nessa parte da cidade nos últimos anos. Mas é também um filme sobre a casa do diretor: não só sua cidade natal, mas também, sobre o apartamento onde morara quase a vida toda, e serviu de locação para muitos dos seus projetos, incluindo seu primeiro longa de ficção, O Som ao Redor.
Durante um bate-papo após o filme, o cineasta falou que teve a ideia de incluir o trecho em que fala sobre o apartamento quando se deu conta de que em breve não poderia morar mais lá. Quando comecei a escrever o roteiro de Partidas, eu estava me mudando de um apartamento que frequentara a vida toda, e tinha sido minha casa em momentos espaçados, nos últimos 12 anos. Inspirada pela fala de Kleber Mendonça, também coloquei o apartamento como um personagem na minha história.
Gosto demais da sua cinematografia, e tenho um carinho especial por Aquarius, que também é um filme sobre casas, pertencimento e transformações urbanas. Mas foi muito interessante ver esses mesmos temas e o amor que o diretor tem pelo cinema dentro de um documentário.
Retratos Fantasmas está disponível na Netflix, Prime Video e Apple TV.
Mais um filme: o documentário Jogo de Cena brinca com esses conceitos de memória e criação de uma forma única. Dirigido pelo cineasta Eduardo Coutinho, ele traz quatro mulheres comuns apresentando relatos pessoais, ao mesmo tempo em que os mesmos relatos são interpretados por quatro atrizes. Coutinho é um dos maiores (senão o maior) documentaristas do Brasil, e faz parte de uma geração de diretores que deixava explicito durante a filmagem todos os artifícios da produção de um filme. Não é incomum, por exemplo, ouvi-lo se dirigir diretamente aos personagens durante os depoimentos. Seus filmes talvez não pareçam tão inovadores para um público mais jovem, mas é notável que o cineasta era capaz de humanizar seus entrevistados de uma forma que poucos documentaristas conseguiam.
Jogo de Cena pode ser visto na Netflix e no Globoplay.
Um texto e uma autora: Infelizmente eu não pago minhas contas com quadrinhos, mas já faz um tempo que trabalho no mercado editorial como assessora de imprensa. Essa semana escrevi junto com minha colega Heila Lima um texto sobre Octavia E. Butler para o blog da firma. Considerada a dama da Ficção Científica, a escritora é conhecida por livros como Kindred e A parábola do semeador. O texto pode ser lido aqui. É curto, mas espero que sirva de inspiração para mais pessoas irem atrás do trabalho de Butler.
Obrigada por ler até o final, e até a próxima edição!
que texto lindo, muito bem escrito e toca a alma