Obs.: o texto abaixo traz uma menção à abuso sexual
Eu penso muito sobre monstros. Isso se deve muito ao fato de que a monstruosidade foi um tema muito importante no meu mestrado (que eu já mencionei aqui). Ela se tornou uma das minhas chaves de leitura de mundo, se expandindo para além do campo acadêmico e influenciando minha percepção sobre muitos aspectos da vida.
A grande verdade, porém, é que sou obcecada por monstros desde sempre. A diferença é que essa obsessão não era muito divertida, já que fui o tipo de criança que tinha medo de absolutamente tudo.
E quando falo tudo, é literalmente tudo: escuro, gente mascarada, cachorros, o som da água passando nos canos em casa, cômodos específicos da casa da minha avó, bonecas, fantasmas, qualquer animal maior do que eu, o filme A Casa dos Espíritos, cemitérios, a casa de praia da minha tia avó, as fotos em preto e branco de família cheia de gente que eu nunca tinha visto na vida, piscinas muito fundas, e a lista segue….
Talvez não seja errado dizer que eu vivia em estado constante de medo. Como eu falei antes por aqui, ele sempre foi um sentimento extremamente palpável. Sem querer ser Freudiana mas já sendo, muitos desses medos me parecem passar pela ideia do infamiliar, ou resumindo muito porcamente, de tudo aquilo que poderia ser extremamente próximo, mas que por alguma distorção nefasta, se torna ameaçador.
E quando eu me deparo com as conceituações teóricas de monstruosidade, eu vejo que essa distorção pode até ser pequena, mas é fundamental para que o monstruoso seja monstruoso. O Diabo, como dizem, está sempre nos detalhes.
***
Existem muitas definições de monstruosidade, mas a grande maioria passa pela ideia do monstro como uma representação de um Outro dotado de uma diferença impossível de ser ignorada. Mesmo que em muitos aspectos ele se pareça conosco, seja familiar, é essa diferença que provoca abjeção, e o transform em uma ameaça para nossa integridade de diversas formas.
O teórico Jeffrey Cohen defende que a monstruosidade é um conceito cultural, então estaria sempre determinada por aspectos da cultura em que o monstro se insere. Dentro dela, o monstro ocupa o lugar d’O Outro, uma diferença tão abjeta, tão perceptível, que ameaça todas as seguranças (físicas, morais, espirituais). Monstros não se encaixam na taxonomia estabelecida. Nas palavras de Cohen:
“eles são híbridos que perturbam, híbridos cujos corpos externamente incoerentes resistem a tentativas para incluí-los em qualquer estruturação sistemática”
(p.31).

Podem ser formados pelas partes de diferentes seres, ou possuir uma anatomia um pouco diferente da humana “tradicional”. A história da monstruosidade (ao menos no mundo ocidental) é marcada com opções para todos os gostos: bestas híbridas, demônios, gêmeos siameses, bruxas, pessoas racializadas…..a diferença monstruosa possui muitos rostos.
A monstruosidade representa não apenas uma alteridade que não pode ser ignorada, mas também os limites que não podem ser ultrapassados. A maior punição por desobedecê-los costuma ser uma só: tornar-se igualmente monstruoso.
***
Se monstros são definidos pela cultura, e esta muda constantemente, isso significa que a monstruosidade assume diferentes formas, com o passar dos séculos. Também significa que a condição de Outro pode se adequar inclusive a discursos de opressão e dominação. Como Cohen pontua, não são poucos os casos de povos, nacionalidades e etnias que ganham monstruosidade através de discursos bem elaborados para justificar seus extermínio: pessoas indígenas em países como Estados Unidos e Brasil, os muçulmanos durante as Cruzadas, etíopes e outros povos africanos desde a época do Império Romano, e muitos outros exemplos, que não se limitam apenas a pessoas racializadas, mas também a qualquer um que desafia convenções de gênero e sexualidade.
Em seu livro Embodying the Monster: Encounters with the Vulnerable Self, a pesquisadora Margrit Shildrick aborda de forma muito sensível a relação entre monstruosidade e vulnerabilidade. Para a autora, o corpo monstruoso seria todo aquele que não se adequa a um ideal de impenetrabilidade. Como Cohen, Shildrick associa o monstruoso com o ambíguo e a falta de limites. E como pontua a autora, o ideal de corporeidade inabalável tem suas raízes no iluminismo, e costuma ser geralmente branco e masculino. Um corpo que se deixa penetrar, “vaza”, deteriora e se confunde com outros não pode ser visto como humano, pois:
Ser um eu é, acima de tudo, distinguir-se do outro, ser ordenado e discreto, seguro dentro dos limites bem definidos do corpo, em vez de ser realmente o corpo.” (SHILDRICK, p. 50, tradução livre)
O Shildrick mostra é que essa conta não fecha para a maioria das pessoas.
“Ao montar um modelo de tal invulnerabilidade, é inevitável que para todos nós haja uma luta para manter os limites necessários, enquanto para uma minoria substancial que vivencia alguma forma de ruptura corporal ou anomalia congênita, o ideal está fora de alcance.” (SHILDRICK, p.51, tradução livre)
Para a autora, essa monstruosidade/ vulnerabilidade é vista como um estado inevitável, e não necessariamente físico. Desse modo, cabe aos monstros ressignificar sua posição para não apenas serem tolerados, mas também reconhecidos.
Mas acredito que seria muito ingênuo pensar que algo tão incontrolável e mutável quanto a monstruosidade fosse se contentar em aparecer apenas em grupos específicos. Se por um lado temos uma longa tradição de monstruosidade associada a vulnerabilidade e a marginalidade, nos últimos anos, ela parece despontar também em grupos menos ostracizados.
Esse tipo parece estar mais ligada ao infamiliar, ao sentimento de descobrir algo nefasto por trás de coisas, lugares, e principalmente pessoas que antes pareciam tão próximas.
***
Uma vez, quando eu era criança, minha mãe estava vendo na TV um filme sobre uma mocinha cuja vida miserável a fazia ir ao cinema quase todo dia, para assistir o mesmo filme. Até que, na milionésima sessão em que entrou, um dos personagens quebrou a quarta parede e pulou para fora da tela.
Eu nunca terminei de ver esse filme, mas aquela cena foi uma das coisas mais fantásticas que eu já tinha visto na vida. Aprendi naquele dia que tinha sido dirigido por um cineasta de Nova York, um dos favoritos da minha mãe.
Já adolescente, eu comecei a ver todos os filmes desse cineasta, quase sempre acompanhada por ela. Quando eu entrei no curso de cinema, sempre o citava entre as minhas referências.
Anos depois, uma matéria em um jornal estrangeiro trazia um depoimento da filha desse mesmo diretor, dizendo que tinha sido abusada por ele na infância. A parte que mais me marcou era onde a moça dizia ser obrigada a ver o rosto do próprio abusador espalhado por todos os cantos como uma forma de celebrar sua genialidade e talento.
Hoje em dia, quando penso nele, essa frase ainda me assombra. Mas ao mesmo tempo, eu penso em todas os seus filmes que assisti com minha mãe, e como vendo um de seus filmes pela primeira vez, eu me dei conta de poucas coisas no mundo se comparavam ao cinema.
***
Cohen aponta que a ambiguidade física e moral do monstro pode o colocar numa posição clara de abjeção, mas também, de desejo. Nas palavras do próprio:
“As mesmas criaturas que aterrorizam e interditam podem evocar fortes fantasias escapistas; a ligação da monstruosidade com o proibido torna o monstro ainda mais atraente como uma fuga temporária da imposição. Esse movimento simultâneo de repulsão e atração, situado no centro da composição do monstro, explica, em grande parte, sua constante popularidade cultural, explica o fato de que o monstro raramente pode ser contido em uma dialética simples, binária (tese, antítese... nenhuma síntese). Nós suspeitamos do monstro, nós o odiamos ao mesmo tempo que invejamos sua liberdade e, talvez, seu sublime desespero.”
(p.48)
Pense em Hannibal Lecter fazendo carpaccio com uma perna decepada enquanto ouve música clássica. Pense em Ulisses amarrado ao mastro do próprio navio, para que possa ouvir o canto das sereias sem se jogar ao mar. Pense no Dr. Jekyll se transfigurando em Mr. Hyde para assombrar as ruas da Londres Vitoriana.
Mas também pense na criança ressuscitada em Cemitério Maldito. Pense no Drácula de Francis Ford Coppola dizendo a Mina Harker que “atravessou oceanos de tempo” para encontrá-la. Pense na Criatura de Frankenstein, que não apenas domina a “ciência divina da fala”, como também tenta convencer seu Criador de sua própria humanidade (e acaba por convencer o leitor).
Para algo se tornar infamiliar, necessariamente traz algum traço de familiaridade em si. E quando percebemos no monstro não apenas aquilo que desejamos, mas que também admiramos e até amamos, nossas certezas se tornam tão ambíguas quanto sua composição.
***
No meu livro favorito do meu escritor favorito, o protagonista retorna para sua casa de infância e descobre que a família vizinha era formada por bruxas. Ele também relembra uma série de acontecimentos terríveis e sobrenaturais, e seu envolvimento com eles. Diante das memórias recém adquiridas, e da percepção de sacríficios que foram feitos, o protagonista pergunta a uma das bruxas se sua vida tinha valido alguma coisa. Se ele tinha “passado no teste” de ser uma pessoa. A resposta da bruxa é “você não passa ou falha em ser uma pessoa, querido”.
Meu escritor favorito é um monstro, não apenas por suas características recém-descobertas que o tornam abjeto, mas porque não consigo dissociá-las de todos os livros que escreveu, de todas as formas que suas histórias me cativaram, e de como seu trabalho mudou minha vida e me transformou em quem eu sou hoje. Ele ainda é o home que escreveu o livro citado acima.
Ele não foi o primeiro de tantas figuras que me surpreendeu com sua própria faceta monstruosa. Afinal de contas, houve o cineasta de Nova York, uma escritora de fantasia que formou uma geração de leitores, e tantos outros, tantos menos poderosos, menos famosos, mas ainda assim dotados de admiração e respeitabilidade. E nos últimos anos, o número parece só aumentar.
***
Na série de quadrinhos Hulk Gray, de Jeff Loeb e Tim Sale, o cientista Bruce Banner relata ao seu amigo e psiquiatra Leonard Samson seus primeiros dias na pele do monstro verde (que aqui não é verde, mas cinza. Tem um motivo, mas eu vou pular essa explicação). Perseguido pelo exército, o Hulk chega ao ponto de quase matar seu sogro (ou o sogro de Banner?), o general Ross. Mas é impedido no último minuto por Betty, sua então esposa, que pede: “ ele é meu pai. Com todos os seus defeitos, eu o amo. Sempre vou amá-lo. E por isso não pode matá-lo”.
Existem muitos pais que não merecem suas filhas, e existem filhas que não merecem seus pais. E existem monstros que, não importa o quanto tentemos, não deixam de parecer humanos ao nosso olhar.
***
Já fui questionada, quando falei sobre os monstros como o meu escritor favorito, se chamá-los assim seria ignorar a posição de poder que muitas dessas pessoas ocupam. Não são corpos vulneráveis de Margrit Shildrick. Ainda assim, acho que a alcunha serve. A cultura muda, os monstros mudam, e em tempos de questionamentos constantes como os nossos, os monstros se tornam ainda mais ambíguos.
Em alinhamento com as teses de Shildrick e Cohen, acredito que o monstruoso e o humano caminham lado a lado. Se a cultura cria o monstro, e o humano cria a cultura, os monstros são nossos filhos. Nós os gestamos, e o tamanho de sua transgressão é aquele que elaboramos. Dentro dessa lógica, também podemos destruí-los. Mas em seu eterno processo de transformação, é revelada outra característica crucial do monstros: ele sempre retorna.
Na mitologia grega, o herói e semideus Héracles recebe a missão de matar a Hidra de Lerna, criatura híbrida composta por muitas cabeças. Cada vez que Héracles corta uma, outras tantas nascem. Assim como muitos monstros, na ficção e na vida real, o fim de um parece trazer o surgimento de tantos outros.

Enquanto escrevia esse texto, percebi que não lembrava como Héracles derrota a Hidra de Lerna. Eu também não sei o que fazer com os monstros que estão ao meu redor, pelos quais nutro admiração, respeito, e em alguns casos, até amor. Não sei o que fazer com os sentimentos ambíguos dentro de mim, não sei o que fazer com o medo de que outras pessoas igualmente admiráveis sejam contaminadas por sua monstruosidade.
Em uma das minhas últimas sessões de terapia, relatei que sonhara de novo um pesadelo recorrente que tenho desde a infância. Frustrada, perguntei para minha terapeuta se isso nunca acabaria.
No fim do labirinto, sempre haveria um minotauro me esperando?
Ela respondeu: “enquanto ele te assombrar, sim”.
***
Fontes usadas no texto:
COHEN, Jeffrey Jerome. Cultura de Monstro: sete teses. In: HUNTER, Ian; DONALD, James; COHEN, Jeffrey Jerome; GIL, José. A pedagogia dos monstros: os prazeres e os perigos da confusão de fronteiras. Belo Horizonte: Autêntica, p.25-55, 2000.
SHILDRICK, Margrit. Embodying the Monster: Encounters with the Vulnerable Self. London: Sage Publications, 2002.
Além de bem escrito seu texto é tão genuíno e corajoso quanto possível. Desde que iniciei minha pesquisa de mestrado neste mesmo tema, me deparei com vários autores tratando-o com pacato e medíocre academicismo com que estamos acostumados. Isso me fez questionar se apenas eu havia sido realmente tragado pelo monstro, encerrado no labirinto do minotauro... Se apenas à mim a monstruosidade havia semeado genuína admiração. Com seu texto percebi que não! Obrigado, Luísa. Parabéns pelo trabalho.