Bem-vindes a mais uma edição da newsletter!
Não, hoje não é sexta-feira. Sim, essa edição está atrasada.
Muitas coisas contribuíram para esse atraso. Um feriado. O Gagacabana. Muita coisa rolando, e eu não vou fingir que escrever um texto por semana é uma tarefa fácil. Tem um motivo para eu ser uma mulher de obsessões e um deles é que o meu cérebro é meio monotemático mesmo.
Mas enquanto eu via a ordem natural das coisas ser revertida em Copacabana (o 433 desceu a Santa Clara), lembrei de uma pauta em que eu penso o tempo todo, e ainda não tinha explorado aqui: saúde, ou melhor, a saúde do corpo que habito.
Faz uns 3 anos que esse tema não sai da minha cabeça basicamente porque eu tenho me sentido velha. Minha carteira de identidade vai entregar os meus 31 anos vividos, mas às vezes a sensação que dá é de que já são 61. Desde os meus 25 já sinto que o meu corpo não dá mais conta de muita coisa. Quando eu tinha uns 23, 24, madrugava terminando um quadrinho, dormia 2 horas e ia trabalhar como livreira, andando de um lado para o outro o dia inteiro, e almoçava um pacote de ruffles. Hoje em dia se eu não tomo o meu café da manhã, o meu cérebro simplesmente não liga.
Além disso, cada vez mais eu sinto o peso de não ter cuidado melhor da minha saúde antes. Sendo muito honesta, eu nunca tive uma relação boa com o meu corpo. Isso influenciou e influencia vários aspectos da minha vida. Desde fazer exercício até ir ao médico. A minha promessa de Ano Novo foi literalmente que em 2025 eu iria marcar todos os exames que estou devendo desde antes da pandemia (e sim, mãe, eu estou marcando meus médicos)
Recentemente eu comecei a ler O segredo da força sobre-humana, da Alison Bechdel, e os relatos da autora sobre sua obsessão vitalícia com o exercício e aperfeiçoamento físicos me deixam desconcertada, porque por mais que eu fosse e seja uma pessoa que eu goste de ar livre, eu nunca consegui estar confortável o bastante na minha própria pele para usá-la dessa forma.
Habitar um corpo nunca foi necessariamente divertido para mim, apesar de ele ser capaz de ter muita diversão. Essa massa de órgãos, ossos, músculos que me leva para os lugares sempre foi mais pesada, larga, lenta e frágil do que eu gostaria. É um corpo que parece ultrapassar e ser ultrapassado o tempo todo.
Mas é o meu corpo, e o único que eu tenho.
Ter uma relação ruim com ele me fez (e ainda faz) querer ignorá-lo a maior parte do tempo, e me sentir desconectada em muitos momentos. É como se uma parte minha acreditasse que ele pode se rebelar a qualquer momento, se vingar de todas as noites insones, todas as doses estratosféricas de cafeína consumidas, todos os lanches de procedência duvidosa.
Eu queria dizer que a minha preocupação com o tema veio de um lugar de consciência, cura e autoestima, mas seria mentira. O motivo para eu ter começado a me preocupar com a saúde dele (ou melhor, a minha) foi porque:
Como já disse, eu percebi que estava ficando velha, e com isso, mais perto de um fim. E eu quero adiar esse fim o máximo possível.
Eu percebi que se o meu corpo não funcionasse direito, eu não ia poder fazer quadrinhos direito.
É meio inevitável para mim não associar corpo com trabalho porque, bom, o primeiro não existe sem o segundo. Ao mesmo tempo, a experiência que a maioria das pessoas que eu conheço parece viver é de um embate entre os dois, não uma união. A rotina puxada dificulta ainda mais o processo de cuidar da própria saúde. Falta tempo para se exercitar, comer direito, descansar, transar, mas sem todas essas coisas, é impossível trabalhar.
Apesar disso, nos últimos anos entramos em uma cultura muito doida de “ser a melhor versão de si mesmo”: treinar BEM, comer BEM, dormir BEM, trabalhar BEM. É a volta do “Choose Life”, reforçado por uma ideia de autocontrole e equilíbrio. Você pode se tornar uma máquina perfeita, impenetrável, capaz de dominar tudo ao seu redor. Se essa retórica te faz lembrar um pouco daquela palavra com F, não é por acaso.
É óbvio que nem todo mundo vive esse suplício, e uma parcela da população tem dificuldades a mais nesse processo. Dia 4 de maio teria sido aniversário do artista plástico e ativista estadunidense Keith Haring, conhecido pelos desenhos e pinturas como “bonequinhos coloridos”. Haring era gay e uma pessoa soropositiva com AIDS, tendo dedicado grande parte da sua vida e arte para combater e falta de informação e o preconceito contra outres iguais a ele. Lendo esse post abaixo, feito pelo grupo ativista Act Up, é meio impossível não pensar como envelhecer (e principalmente, envelhecer bem) é um privilégio. Nem todo mundo vai conseguir ser um Picasso, de cabelo branco e ainda produzindo, criando. Nem todo mundo vai ver a própria obra se transformar com a passagem do tempo do mesmo jeito que o seu corpo. E os motivos para isso não são aleatórios.
Sendo mais uma vez monotemática, foi justamente a pesquisa sobre monstruosidade que me ajudou a processar melhor meus sentimentos sobre esses assuntos. No texto sobre monstros eu citei o trabalho da pesquisadora Margrit Shildrick, e como ela associa monstruosidade e vulnerabilidade no livro Embodying the Monster. Para a autora, o ideal de corpo adotado pelo mundo ocidental é herança de uma visão bem cartesiana e iluminista: uma máquina perfeita, impenetrável, branca e masculina.
Isso significa que, talvez uns 90% da humanidade não se encaixe nele, pelo simples fato de que pessoas, além de não necessariamente serem caucasianas, menstruam, engravidam, ficam doentes, envelhecem, perdem unhas, cabelo, membros e outras partes do corpo. E continuam sendo pessoas.
O que Shildrick propõe, muito inspirada por autoras como a pós humanista Donna Haraway (Quando as espécies se encontram está na minha lista de leitura há alguns anos) é que repensemos a forma como habitamos nossos corpos, e como nos relacionamos com os corpos alheios.
Abraçar o monstruoso em suas múltiplas formas, porém, abrir-se àquilo que mais claramente põe a solidez e a calculabilidade espacial e temporal do humano em dúvida é, no meu entender, justamente romper o limite dos limites.
Shildrick, 2002, p. 128-129, tradução livre
A busca da autora não é para uma nova forma de conter o corpo e seus conteúdos (físicos, psicológicos, metafóricos), mas sim extrapolá-lo.
Embora o que proponho seja, no sentido mais amplo, uma bioética – ou seja, uma ética para e do corpo – meu desejo estratégico de enfatizar a corporeidade não pretende ocultar qualquer anseio nostálgico por segurança ontológica ou corporal. Pelo contrário, estou do lado dos monstros como significantes da desestabilização radical dos processos binários de identidade e diferença que desvalorizam a alteridade. Monstros claramente não podem existir separados de corpos "normais", mas, ao mesmo tempo, são excessivos em relação ao binário, não contidos por nenhuma categoria fixa de exclusão.
Shildrick, 2002, p. 129, tradução livre
Inspirada por essas reflexões, e também por uma pesquisa pessoal que tenho feito para outros projetos (como o roteiro de vampiro), juntei algumas fotos de infância e duas radiografias minhas de criança e montei essa a “tira” abaixo:
Eu queria muito que as Luísas que eu já fui pudessem se sentir confortáveis na própria pele, mas isso é impossível. O que eu posso é tentar garantir um futuro melhor para a Luísa que existe agora, e as suas versões que estão por vir. Garantir que esse corpo frágil, vulnerável, monstruoso consiga continuar existindo com um mínimo de dignidade, produzindo arte, batendo perna e se divertindo por aí. Não é perfeito, mas é pelo menos é meu, e de mais ninguém.
E AGORA, AS RECOMENDAÇÕES:
Uma leitura: no último fim de semana de abril eu participei da Feira Canastra, em BH (eu sei, preciso aprender a divulgar meus eventos). Voltei para casa com muito café e pães de queijo consumidos, e também com o zine/poster Aqui dentro, todos os perigos são conhecidos, da Laura Athayde.


A Laura escreveu sobre o produção desse zine na sua newsletter, e eu incentivo fortemente que você leia o texto, veja as belas fotos tiradas por ela e se inscreva porque a newsletter da Laura é maravilhosa.
Eu admiro demais o trabalho da Laura pelo capricho, sensibilidade e por seu talento para falar muito com poucas palavras. Na newsletter você pode conferir como adquirir essa e outras produções dela.
Um vídeo: Ora Thiago (sempre ele) publicou essa semana um vídeo absurdo de bom sobre o filme A Substância (um dos meus favoritos do ano passado) e suas muitas leituras. Entre elas, Thiago fala sobre envelhecimento, e uma visão (defendida por muita gente boa) de envelhecer do jeito certo ou do jeito errado. Ele também aborda alguns dos muitos incômodos que eu tive com o Oscar desse ano, e a reação das pessoas aos filmes e atores vitoriosos. Eu não estou dizendo que você devia ver esse vídeo, mas talvez você deva.
Um podcast: O Ora Thiago também fez uma participação especial no episódio abaixo do podcast Vibes em Análise, e eu recomendo demais ouvir o episódio inteiro, que vai justamente debater a obsessão atual pela MELHOR VERSÃO DE NÓS MESMOS, e todos os discursos meio “esquisitos” que existem por trás disso.
Obrigada por ler até aqui, e até a próxima edição!
acho que a gente nunca mais se recupera totalmente do "já fiz 30 anos", mas isso não é necessariamente uma coisa ruim... parabéns pelo texto!
Obrigada pela indicação! E fico tão feliz que você gostou do zine!
Também nunca fui muito de cuidar do corpo, nunca vi essa tal endorfina pós-treino que tanto falam e já jantei meus pacotes de Doritos. Tem uns anos que como melhor e faço exercícios (por obrigação) porque senti o declínio lá por volta dos 27 anos. Mesmo assim, de vez em quando, o corpo dá pau, mesmo. Não é necessariamente culpa sua! Mas as crises passam e a gente fica imensamente grato por cada dia sem dor, sem refluxo, sem dor no cantinho esquerdo das costas embaixo da omoplata :}
Vamos ser velhas felizes porque isso é punk pra caralho!